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GOVERNANÇA DA ÁGUA: DISCURSO, PODER E IDEOLOGIA NA CONSTRUÇÃO DAS GRANDES ESTRUTURAS HIDRÁULICAS
O presente capítulo oferece uma visão global dos conceitos e categorias de análise que contribuíram para a compreensão de como as usinas hidrelétricas (UHEs) de grande porte construídas durante a ditadura militar, enquanto intervenções sócio espaciais, foram resultantes do fazer político, econômico e ambiental.
Inicialmente, define-se um conceito geral de governança da água para, em seguida, tratar especificamente das diferentes escalas da governança, da gestão de infraestruturas hidráulicas e da gestão das usinas hidrelétricas.
Serão abordados também as categorias de análise: discurso, poder e desenvolvimentismo, além da doutrina de segurança nacional, pela sua relevância para a formação do imaginário social durante o regime militar no Brasil.
O poder se refere, aqui, não a uma “entidade” que emana exclusivamente do Estado; entende-se que é preciso também considerar o papel da sociedade civil, do mercado, entre outros atores, como participantes das relações de poder. Assim, a governança da água reflete os processos de cooperação e conflito, nos quais diferentes atores negociam de diferentes formas por seus significados, direitos, usos, benefícios derivados, entre muitos outros aspectos, baseado nos diversos interesses.
A ecologia política ofereceu a base teórica que auxiliou na análise aqui apresentada. O que se convencionou chamar de ecologia política, a partir dos anos 1980, trata-se de uma abordagem para investigar as relações homem-natureza que analisa os processos sociais, econômicos e políticos que afetam o acesso e o uso da terra e dos recursos naturais. Estes processos geralmente envolvem assimetrias de poder na tomada de decisões sobre a utilização ou preservação dos recursos naturais (Castree; Kitchin; Rogers, 2016; Robbins, 2011; Mayhew, 2009).
Embora os estudos de ecologia política tenham suas raízes na ecologia cultural e na economia política, eles se integraram com os estudos culturais em geografia humana e em antropologia, nascidos no século XIX, que tratavam da adaptação das sociedades ao meio físico e das técnicas elaborados pelos homens para “dominar” o espaço (Robbins, 2011).
No início do século XX, o conceito de paisagem cultural foi introduzido nos Estados Unidos, pelo geógrafo Carl Sauer, por meio de seu texto “A morfologia das paisagens” (1925). Membro da escola de Berkeley, Sauer também via a cultura como um conjunto de instrumentos que permitem ao homem agir sobre o ambiente, se sobrepondo a ele (Claval, 2007).
Nessa mesma escola de Berkeley foi publicado, em 1983, o trabalho do geógrafo Michael Watts, Silent Violence, que é considerado uma das primeiras publicações em ecologia política. Outros trabalhos que marcaram o início da ecologia política, como subcampo de análise, foram os de Piers Blaikie (1985) e Piers Blaikie e Harold Brookfield (1987). Esses estudos passaram a considerar o indivíduo como uma unidade participante de uma cadeia de explicação das relações de poder, em diferentes escalas (Castree; Kitchin; Rogers, 2016).
Apesar de suas raízes, a ecologia política é considerada um subcampo de estudos muldisciplinar e, com o seu desenvolvimento, três aspectos dessa abordagem se destacaram. Em primeiro lugar, tem sido dada mais atenção às características biofísicas da terra e da água, à medida que interagem dialeticamente com os seus usuários, sujeitos a pressões e oportunidades políticas e econômicas (Mayhew, 2009). Em segundo lugar, mais atenção é dada a questões políticas do que nas décadas anteriores, graças à atuação de movimentos e resistências sociais (camponeses, povos indígenas, mulheres, grupos étnicos etc). Finalmente, a diversidade e a complexidade da relação local e extra local passou a ser considerada mais fortemente, enfatizando os novos conjuntos de relações nacionais e internacionais em que os usuários locais de recursos foram incorporados (Robbins, 2011; Castree; Kitchin; Rogers, 2016).
A ecologia política chama a atenção para o que as análises políticas convencionais tendem a ignorar: as múltiplas maneiras pelas quais as condições ecológicas e as relações sociopolíticas interagem umas com as outras para formar a paisagem e, aqui particularmente a waterscape, quando se tratam de intervenções nos recursos hídricos. Em especial, as geometrias de poder e os discursos que constroem o ambiente moldam o uso dos recursos naturais e o controle ambiental. Os exemplos incluem a construção de projetos de infraestrutura, que ajudaram a moldar uma geografia desigual, entre eles, as hidrelétricas. Assim, a construção de hidrelétricas é carregada de relações de poder desiguais e sustentada por discursos de elite que, consequentemente, moldam os diferentes impactos ambientais (Marks, 2015).
Para auxiliar na compreensão da lógica de construção das hidrelétricas de grande porte construídas no Brasil durante o regime militar, consideram-se neste trabalho quatro grandes campos: espaço geográfico, conhecimento, poderes político, econômico e social e ideologia (Figura 1).
No primeiro, que se refere ao espaço geográfico, é onde estão inseridas a biodiversidade, as relações ecológicas, a hidrologia etc. É a base espacial onde todas os campos em conflito e cooperação se materializam. É o fixo, de Milton Santos (2006), o espaço absoluto, de David Harvey (2002).
O segundo campo refere-se ao conhecimento usado para construir as hidrelétricas. Neste campo estão inseridas a tecnologia, a pesquisa, as técnicas, os especialistas e os conhecimentos tradicionais. O papel do conhecimento muda à medida que a relação entre ciência e sociedade muda (Hajer, 2003). Neste trabalho trata-se especificamente do conhecimento no campo da engenharia, pois se relaciona intrinsecamente com a construção das hidrelétricas e corroborou com o “paradigma hidráulico”, ainda dominante, que considera a água como um recurso para ser explorado, tendo como foco o “prever e prover”, numa alusão à crença na técnica (Sauri; Del Moral, 2001; van der Zaag; Savenije, 2012).
O terceiro campo, o dos poderes políticos, econômicos e sociais, é onde estão inseridas as políticas governamentais, as instituições, as legislações, os financiamentos, a sociedade civil, os movimentos sociais, a mídia e os direitos.4 A elaboração de políticas deve ser considerada como um fenômeno nela mesma, pois para além de consistir em uma forma de encontrar soluções aceitáveis para problemas preconcebidos, consiste em uma maneira dominante na qual as sociedades regulam conflitos sociais latentes (Hajer, 2003).
No quarto campo, o da ideologia, incluem-se os discursos, as formas de governo, as ideias sobre o desenvolvimento, entre outros. O entendimento que se tem do mundo é influenciado, em grande medida, pelos interesses dos grupos detentores do poder e, por isso, as lutas simbólicas pela imposição de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais os grupos impõem, ou tentam impor os seus valores e a sua concepção do mundo frente a outras tantas.
Segundo Carlos Fico, cujo trabalho analisa a construção de uma imagem otimista em relação aos governos militares brasileiros “[…] esse movimento de criação de uma imagem retocada não é nem sempre uma ação ardilosamente coordenada e, nesse sentido, ‘maquiavélica’. Trata-se de algo mais complexo.” (Fico, 1997:15). Elas compõem um discurso que visa legitimar práticas sociais, sobretudo das elites.
Ao propor esse esquema parte-se de uma compreensão de que todos esses campos interagem dinamicamente, seja por cooperação ou por conflito. Esse esquema pretende oferecer uma visão das possíveis relações, sem, obviamente, esgotar as possibilidades de análise.
Assim, busca-se compreender como os poderes político, econômico e social, traduzidos em instituições, políticas governamentais e financiamentos conduzem a pesquisa, o uso da tecnologia e as práticas na construção espacial. Essas relações são imbuídas em ideologias que buscam se legitimar socialmente, por meio da utilização de estratégias discursivas como a propaganda ideológica. Os discursos são parte constituinte da realidade e são revestidos de interesses, de forma que as instituições só se tornam poderosas por meio da autoridade do discurso e, mais que isso, os interesses investidos nos discursos mudam no decorrer do tempo (Foucault, 2010).
A dinâmica das relações sociais produz a história da natureza e da sociedade, e a água, enquanto elemento participante dessa dinâmica, responde às necessidades materiais para a organização da sociedade de diferentes formas (Swyngedouw; Heynen, 2003; Swyngedouw, 2004). A água guarda as relações de poder, o trabalho humano, as convenções sociais, as tecnologias, as instituições, o valor simbólico e, sobretudo após as revoluções industriais e o aceleramento do processo de urbanização, o valor econômico, configurando-se, dessa forma, também como uma categoria social (Budds; Hinojosa, 2012; Linton; Budds, 2014, Mehta; Karpouzoglou, 2015).
O conceito de governança da água é centrado na relação de atores e instituições em torno das decisões sobre o uso dos recursos hídricos. O conceito é relativamente novo e as tentativas de sua aplicação são ainda mais recentes.
O termo “governança”, de forma geral, teve uma de suas primeiras utilizações em um documento de 1992, intitulado Governance and Development, do Banco Mundial, no qual a governança é definida como a maneira como o poder é exercido na gestão dos recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento (World Bank, 1992). Já o termo “governança da água” surgiu em documentos oficiais pela primeira vez, somente dez anos depois, em 2002, na Política Nacional de Águas do Québec, e levava em consideração interesses sociais, econômicos, ambientais e também de saúde, com base nos princípios de colaboração e democracia para uma gestão compartilhada da água (Québec, 2002).
A alocação da água e o seu uso são inerentemente políticos, por isso, pode-se afirmar que ela está diretamente relacionada a questões de poder e de justiça (Linton, 2010; Budds; Hinojosa, 2012), e que a governança da água reflete como a sociedade está organizada em torno desse elemento e os nexos entre água e energia.
Dito de outro modo, a governança da água se relaciona a como uma sociedade administra o acesso e o controle sobre os recursos hídricos e sobre os benefícios gerados pela sua utilização. Refere-se também a como se dá a participação no processo de tomada de decisão nos assuntos concernentes aos recursos hídricos, demonstrando como o poder e a autoridade são exercidos e distribuídos na sociedade (Unesco, 2003; Castro, 2007). A governança da água opera, assim, com a criação de liberdades condicionais, criando direitos e deveres.
De modo mais objetivo, a governança da água concerne ao estabelecimento de políticas e regras para o uso dos recursos hídricos e para o monitoramento contínuo de sua adequada implementação, por parte dos diferentes atores envolvidos. Intenciona também (ou pelo menos deveria) incluir os mecanismos necessários para equilibrar os poderes dos membros, com as suas responsabilidades associadas, visando aumentar a equanimidade entre as diferentes forças e poderes em atuação.
A aplicação do conceito de governança da água propõe, assim, superar a concentração exclusiva de poder em governos formais e leva em consideração outros atores envolvidos na elaboração de políticas públicas, incluindo diferentes stakeholders, tais como empresas privadas, autoridades municipais e estaduais, os órgãos de bacia hidrográfica (comitês, conselhos e agências), ou organizações não governamentais (ONGs), mas também clãs familiares e redes clientelistas.
Como meio de construção de alianças e cooperação, a governança da água é também permeada por conflitos que decorrem das diferenças sociais e seus impactos no meio ambiente, bem como das formas de resistência, organização e participação dos diversos atores envolvidos (Jacobi; Barbi, 2007).
A participação de atores não estatais tem importantes implicações para a natureza do poder do Estado. Assim, em espaços de “Estado limitado” ou “burocrático”, onde a regulação estatal é diminuída, os atores não estatais, como o empresariado, envolvem-se muito na orientação política e na tomada de decisões (Risse; Lehmkuhl, 2007; Mann, 2008). Por outro lado, em espaços de Estado autoritário, onde o poder despótico e de regulação é alto, o poder de atores privados fica reduzido. No caso específico do Brasil, no período aqui analisado, houve uma combinação de Estado autoritário com a atuação do capital privado e isso é apontado como um dos facilitadores para a construção de infraestrutura (Mann, 2008, Campos, 2012).
A estrutura de governança é composta por quatro elementos diferentes que estão interrelacionados: instituições, políticas, organizações e infraestrutura. Mudanças em um elemento levariam a alterações em todos os demais. Além disso, esses elementos interagem em diferentes níveis, do global ao local (Kemerink; Mbuvi; Schwartz, 2012).
Adota-se a noção de que a governança da água é um processo de construção social em torno da utilização da água, enquanto recurso, feita por conflito e cooperação para alcançar um consenso em torno das políticas e práticas de gestão e da tomada de decisão. Esta noção transcende, portanto, uma abordagem técnico-institucional e se insere no plano das relações de poder e do fortalecimento de práticas de controle social que media as relações entre o Estado e a sociedade civil.
1.1.1 – Governança da água e escala
Estudos de governança da água prestam particular atenção a questões de integração entre diferentes ordens territoriais (internacional, nacional, regional, municipal, bacia hidrográfica etc.), bem como entre diferentes níveis institucionais, que podem variar de associações locais a instituições globais. Essa integração, por isso, abrange diferentes atores sociais e modos de fazer gestão e política (OCDE, 2011; Künneke; Groenewegen, 2009).
Na escala internacional, o debate sobre a governança da água veio a reboque do debate sobre a governança ambiental e, especialmente, do aquecimento global. Nesse nível, stakeholders tais como organizações internacionais (Organização das Nações Unidas – ONU, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE etc.), governos nacionais, agências internacionais de financiamento, ONGs, corporações multinacionais e vários grupos especializados debatem a possibilidade e a necessidade da criação de regras e regulamentações, mecanismos de uso, gestão e governança da água entre diferentes países.
Em nível nacional, é comum que a água seja apropriada como um aspecto relativo às questões do desenvolvimento nacional, da segurança nacional e da relação entre unidades da federação e regiões. É comum que apareçam nessa escala grandes projetos de transposição de água entre bacias hidrográficas e nos rios de domínio federal. As outorgas de uso dos recursos hídricos podem ser expedidas nesse nível de atribuição. Muitas usinas hidrelétricas de grande porte estão também nesse nível de decisão.
Nas escalas regional e da bacia hidrográfica se dão as decisões que afetam cidades vizinhas ou territórios contíguos. A bacia hidrográfica, no entanto, configura-se como uma espacialidade especial, uma vez que, por exemplo, um município pode pertencer a duas ou mais bacias hidrográficas.
No início dos anos 1980, a bacia hidrográfica foi sendo retomada como unidade territorial de planejamento no Brasil, graças à necessidade de propor soluções entre os interesses dos diversos setores sociais (sobretudo das atividades econômicas) no uso da água e os problemas de poluição e conflitos pelo seu uso, acumulados por várias décadas. Acrescente-se a isso, o início das pressões sociais, exigindo a atuação concreta do governo (Silva, 1998).
Tradicionalmente, a escala local se refere à arena onde a sociedade civil tem maior atuação, pois diz respeito a prática...