[Parte II] Metodologías de investigación
1. Pesquisas de Estado da Arte: fundamentos, características e percursos metodológicos
Jorge Megid Neto
Luiz Marcelo de Carvalho
1.1 INTRODUÇÃO
O aumento significativo do número de pesquisas desenvolvido nas diferentes áreas de conhecimento e, ao mesmo tempo, a diversificação e complexificação dos próprios processos de investigação têm sido reconhecidos como tendências no campo da produção científica em diferentes países. Dessa forma, o acúmulo de conhecimentos gerados pelas pesquisas, quer seja apenas como resultado de seu crescimento numérico, quer seja pela diversificação do ponto de vista dos fundamentos ontológicos que as orientam ou das tendências teórico-metodológicas privilegiadas pelos autores, têm historicamente instigado questionamentos relativos aos seus significados científicos e sociais.
Assim sendo, o conjunto das investigações em uma determinada área tem sido reconhecido pelos pesquisadores como material não só de referência, de ponto de partida para o planejamento de novas pesquisas, mas, também, como objeto de investigação daquela própria área. Tal perspectiva, segundo Silvio Sánchez, suscita questões com as quais os pesquisadores passam a lidar no seu dia a dia, por exemplo, “que tipo de pesquisa se realiza, que tipos de conteúdos se desenvolvem, sua qualidade, sua utilidade, etc.”.
Essa associação entre a intensificação das pesquisas e sua divulgação em um determinado campo do saber, além da possibilidade de tomar tal movimento como objeto de investigação, é também reconhecido por vários outros autores. Por exemplo, Fernandes e Megid Neto comentam sobre a forte expansão das dissertações de mestrado e teses de doutorado em Educação em Ciências no Brasil. No curso de quatro décadas (1970-2010) foram produzidas mais de 5.000 dissertações e teses, alcançando no final desse período cerca de 300 a 400 trabalhos/ano, taxa em franco crescimento. Segundo os autores: “Essa elevada produção e a tendência atual de forte expansão, impulsionada pela área de pós-graduação ‘Ensino de Ciências e Matemática’ (atualmente Área de Ensino) na capes, exigem estudos periódicos do conjunto dessa produção ou de suas características particulares, de forma a facilitar uma adequada divulgação das pesquisas e difundir suas contribuições para a melhoria da educação escolar no país. Nesse sentido, vários estudos de revisão bibliográfica têm sido realizados sobre essa produção dada sua diversidade temática e metodológica e seu potencial para a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem na área e dos processos de formação de profesores”.
Nesse contexto, focamos neste capítulo alguns aspectos relacionados com a natureza e as características dos estudos denominados de “Pesquisas de Estado da Arte”, entendidos como práticas de pesquisa que se voltam para o conjunto de conhecimentos já produzidos em um determinado campo do saber. Assim, buscamos na literatura elementos que pudessem nos situar quanto aos significados, potencialidades e limites de tal perspectiva investigativa. Além disso, procuramos abordar, em linhas gerais, as perspectivas teórico-metodológicas e procedimentos de investigação que têm orientado o desenvolvimento de tais pesquisas.
1.2 PESQUISAS DE ESTADO DA ARTE: FUNDAMENTOS E METODOLOGIA
Um campo de conhecimento científico pode ser considerado consolidado, ou em fase adiantada de consolidação, quando apresenta quantidade considerável de pesquisas acadêmicas, veículos de divulgação dessa produção (por exemplo, periódicos científicos) e eventos acadêmicos com várias edições, propiciando o intercâmbio de experiências, além da divulgação dos resultados das investigações.
Quando a produção desse campo alcança uma quantidade expressiva de pesquisas, é imprescindível conhecer, sistematizar, analisar e avaliar tal produção, verificando seus avanços, suas limitações e eventuais deficiências, seus entraves teórico-metodológicos, suas lacunas. Com base em Ludwik Fleck, importante considerar, também, como se dá a circulação intracoletiva de ideias no interior desse campo e a circulação intercoletiva de ideias com outros campos, ou seja, com quais outros campos do conhecimento ele dialoga, de quais campos toma suas principais referências teóricas e metodológicas, enfim, na linguagem fleckiana, conhecer o coletivo de pensamento e o estilo de pensamento desse campo.
Nesse contexto, os estudos denominados “pesquisas de Estado da Arte” (do inglês state-of-the-art research ou state-of-art research) passam a ser imprescindíveis no sentido de se conhecer e avaliar o desenvolvimento histórico de um determinado campo do conhecimento humano. Tais pesquisas são também denominadas “pesquisas do estado do conhecimento” ou “pesquisas de revisão bibliográfica”.
Para Magda Soares e Francisca Maciel, a compreensão do estado de conhecimento sobre um tema, em dado momento, é necessária para o processo de evolução da ciência, a fim de que seja possível ordenar periodicamente as informações já obtidas. Em nossa compreensão, esse ordenamento das informações, embora necessário e basilar, não traduz o atributo principal dos estudos do “estado de conhecimento”. A possibilidade de compreensão dos rumos teóricos, epistemológicos e metodológicos do campo e de sua relevância social assumem papel essencial, e remetem para uma perspectiva avaliativa da produção de conhecimentos nesse campo. Trata-se, sem dúvida, de uma sistematização de informações, mas, sobretudo, de uma busca de compreensão do conjunto das informações, e muitas vezes tendo por intenção realizar uma avaliação crítica do desenvolvimento de determinado campo de conhecimento. Assim, as pesquisas de Estado da Arte podem ter natureza descritiva, compreensiva (ou interpretativa) e também avaliativa.
Elba Siqueira de Sá Barreto e Regina Pinto consideram que: “O Balanço do conhecimento produzido sobre um tema permite que se organize o conjunto de informações disponíveis, com vista a identificar tendências e recorrências, indicar as possibilidades de integração de diferentes perspectivas e localizar lacunas e questões emergentes”.
No Brasil, pesquisas do tipo Estado da Arte surgiram na segunda metade da década de 1970, difundindo-se, principalmente, nas décadas de 1980 e 1990, quando as pesquisas acadêmicas no campo da pós-graduação alcançaram uma certa expressividade quantitativa, remetendo à necessidade de sistematização, compreensão e avaliação dessa produção. Os estudos do Estado da Arte começaram, então, a se expandir progressivamente, embora em alguns campos científicos estejam mais presentes, por exemplo no campo da Educação e, sobretudo, no campo da Educação em Ciências. Tais estudos têm sido produzidos a partir do uso de fontes diversas, como artigos em periódicos científicos, resumos ou trabalhos completos em eventos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em diversos países, ocorrem com frequência na forma de estudos de revisão (os “review”), ou seja, as amplas revisões de literatura, geralmente publicadas em handbooks ou em números especiais de periódicos científicos.
Barreto e Pinto ampliam as possibilidades de fontes documentais dos estudos que denominam de estado do conhecimento: “No Brasil as fontes mais utilizadas nos estados do conhecimento são, usualmente, acadêmicas, constituídas sobretudo por artigos de periódicos, dissertações e teses. Com menos frequência, aparecem as comunicações apresentadas em congressos e, menor ainda, os livros, capítulos de livros e relatórios de pesquisa. Dependendo do escop...