CapĂtulo I
Robin Hood vira bandido
Na velha Inglaterra do Rei Henrique II e seu filho Ricardo Coração de LeĂŁo os reis dispunham de florestas reservadas, onde sĂł ĂȘles podiam caçar â e, sob pena de morte, ninguĂ©m mais. Eram tais florestas guardadas por homens de grande poder, o mesmo poder atribuĂdo nas cidades aos xerifes e nas dioceses aos bispos.
Perto das cidades de Nottingham e Barnesdale estendia-se a Floresta de Barnesdale, a maior de tĂŽdas as reservadas aos reis. Chamava-se Hugo Fitzooth o chefe dos seus guardas, casado e pai do pequeno Roberto, o futuro Robin Hood. Nascido em Lockesley, em 1160, era por isso, freqĂŒentemente chamado Rob de Lockesley. Lindo rapaz, alegre e vivo, cujo maior prazer breve se tornou acompanhar o pai em suas excursĂ”es pelas matas. Deu-se ao esporte do tiro com flecha, logo que os bĂceps lhe permitiram vergar a madeira do arco; durante as horas de reclusĂŁo que o inverno traz, seu gĂŽsto era ouvir as histĂłrias contadas pelo pai â histĂłrias do intrĂ©pido Will, o Verde, famoso bandido que por muitos anos desafiou o poder do rei e comeu, com seus companheiros, quantos veados reais quis. Mas, histĂłrias, sĂł no inverno. Nas boas estaçÔes o gĂŽsto de Robin era correr a mata de arco em punho.
Sua mĂŁe suspirava ao ver o fulgor dos olhos de Robin quando ouvia as façanhas de Will. O desejo da boa mulher nĂŁo era vĂȘ-lo em vida de aventuras; sim metido na CĂŽrte ou na Igreja. Ensinou-lhe a ler, a escrever, a bem falar, a comportar-se como um gentil-homenzinho. Mas embora recebesse de boa graça aquelas liçÔes, o amor do rapaz estava no arco, na liberdade de correr pela floresta. Companhia nenhuma lhe sabia mais que a das ĂĄrvores silenciosas â ou murmure jantes, quando as agitava a brisa.
Dois companheiros encontrou Rob para tais correrias: um Will Gamewell, seu primo, morador perto de Nottingham, e Marian Fitzwalter, filha Ășnica do Conde de Huntington. O castelo dĂȘste conde podia ser visto do alto das ĂĄrvores mais altas da floresta, donde costumava Rob acenar para a amiguinha, marcando encontros. Rob nĂŁo podia visitĂĄ-la no castelo: as duas famĂlias odiavam-se. Nas redondezas corria que o verdadeiro Conde de Huntington era Hugo Fitzooth, o qual fĂŽra defraudado de suas terras por artimanhas de Fitzwalter, companheiro de aventuras do Rei Ricardo na cruzada contra os turcos da Terra Santa. Entre as duas crianças, porĂ©m, sempre reinara a maior camaradagem, pouco ligando ĂȘles a questĂ”es de famĂlia. Tinham como cenĂĄrio para suas fugidas a amplidĂŁo da floresta, e era o mesmo o gĂŽsto de ambos pelo gorjear das aves, pelo chiar das cigarras, pelo afiar das frondes.
Dias encantadores se passaram assim, mas tempo veio em que o cĂ©u daquela felicidade iria turvarse de nuvens. O pai de Rob tinha ainda dois inimigos perigosos: o magro xerife de Nottingham e o gordo Bispo de Hereford, lugar prĂłximo. Tais e tantas intrigas fizeram ao rei ĂȘstes dois homens, que conseguiram a demissĂŁo de Hugo, do seu lugar de chefe dos guardas florestais. Por uma fria tarde de inverno, Hugo recebeu o golpe tramado pela intriga â e sem saber de que o acusavam foi levado para a prisĂŁo de Nottingham, mais a espĂŽsa e o filho, rapazola por essa Ă©poca jĂĄ entrado nos dezenove anos. MĂŁe e filho lĂĄ ficaram uma noite sĂł. Na manhĂŁ seguinte eram expulsos da prisĂŁo, com extrema dureza. Foram-se em procura do parente mais prĂłximo, Jorge de Gamewell, que os acolheu bondosamente.
Mas o choque recebido, e a marcha para o cĂĄrcere dentro da noite gelada, foram demais para a saĂșde jĂĄ dĂ©bil da mĂŁe de Rob. Caiu de cama. Em menos de dois meses fechava os olhos para sempre. Rob sentiu despedaçar-se-lhe o coração. E ainda sangrava da grande dor, quando lhe sobrevĂ©m segundo golpe: morre tambĂ©m seu pai. O infeliz finara-se na prisĂŁo, sem sequer saber de que seus inimigos o acusavam.
Dois anos transcorreram. Will, o primo de Rob, fĂŽra para o colĂ©gio; o pai de Marian, sabedor dos encontros da menina com o rapaz, mandou-a para a CĂŽrte da Rainha Eleanor. Rob viu-se completamente sĂł. O bom parente Gamewell tratava-o bem, mas que poderia fazer para cicatrizar as feridas abertas em seu jovem coração! Vivia imerso em incurĂĄvel tristeza, chorando a falta da mĂŁe querida, do pai tĂŁo gentil, da namorada e da vida livre a que se habituara. Tomava do arco, acariciava-o, mas que fazer com ĂȘle ali, fora da floresta amada?
Certa manhã no almÎço seu tio lhe disse:
â Tenho novas para ti Rob â e o bom parente ergueu o copo de cerveja que acabara de encher.
â Quais? indagou o rapaz curioso.
â Uma excelente ocasiĂŁo para te mostrares bom atirador de arco e ganhares um prĂȘmio. Vai abrir-se a feira de Nottingham e o xerife anuncia um concurso de tiro. Os mais bem colocados terĂŁo emprĂȘgo junto aos guardas florestais, e o que conseguir o primeiro lugar receberĂĄ uma flecha de ouro â coisa inĂștil como arma, mas de valor como trofĂ©u. Que me dizes a isto, meu Rob? â concluiu Gamewell, erguendo de novo o copĂĄzio de cerveja.
Os olhos de Rob cintilaram.
â Maravilhoso! â exclamou. â Sempre desejei ardentemente medir-me com outros homens no tiro de arco, e ser colocado entre os guardas florestais sempre foi tambĂ©m o meu sonho secreto. Permite-me meu tio que eu tome parte no concurso?
â Pois decerto â respondeu Gamewell. Bem sei que tua mĂŁe queria fazer de ti um homem da cidade; mas estou convencido que a Ășnica vida que te atrai Ă© a vida livre das florestas. Ora, o certo neste mundo Ă© cada qual seguir a sua vocação.
Rob agradeceu as boas palavras do tio, e a partir daquele momento começou a fazer os preparativos para a viagem a Nottingham. Seu arco de teixo necessitava nova corda e as flechas também podiam ser melhoradas.
Dias depois, pela manhã, viram-no a caminho de Nottingham, de arco na mão e um feixe de setas ao ombro. Belo rapagão que era, vestido, da cabeça aos pés, do bom pano verde de Lincoln, caminhava radiante, intumescido de esperanças, sem um só pensamento para a maldade dos homens. Não tinha inimigos, mas, ai! iria fazer um naquele mesmo dia. Ao atravessar a Floresta de Sherwood deu de chÎfre com um grupo de guardas em merenda alegre à sombra dum carvalho. Tinham diante de si um alentado bÎlo e vårias malgas de cerveja.
Quando os olhos de Rob se cruzaram com os do chefe do bando, o rapaz sentiu nĂȘle o inimigo. Era justamente o homem que usurpara o cargo de seu pai e fizera sua pobre mĂŁe viajar sem conforto dentro da neve impiedosa. Mas nada teria havido naquele momento, se o mau homem, depois de ingerir um longo trago, nĂŁo exclamasse:
â Por Deus! Eis aqui um arqueirozinho gentil. Para onde vais, meu menino, com ĂȘsse arco de dois vintĂ©ns e essas flechas de brinquedo? Para a feira de Nottingham? Ah! ah! ah!
Gargalhadas acolheram a ironia do chefe. Rob corou porque na realidade era bom atirador e sentia grande orgulho disso.
â Meu arco, disse ĂȘle, vale o seu; minhas flechas vĂŁo tĂŁo longe e certeiras como as de todos daqui: por isso nĂŁo peço nem recebo liçÔes.
â Mostra-nos a tua habilidade, menino. Se atingires no alvo que vou indicar, receberĂĄs estas moedas de prata, e se errares, uma boa sova.
â Indique o alvo â gritou Rob jĂĄ colĂ©rico. â Jogo minha cabeça contra essa bĂŽlsa que tem aĂ na cintura.
â Assim seja, tornou o chefe dos guardas: tua cabeça contra a minha bĂŽlsa.
Nesse momento um rebanho de veados repontou a pouca distĂąncia, uns cem metros. Veados do rei. O chefe apontou-os, dizendo para Rob:
â Ăs capaz de lançar uma flecha a meia distĂąncia dos veados?
â Aposto minha cabeça contra vinte moedas que matarei aquĂȘle acolĂĄ, o que vem na frente.
E sem acrescentar mais nada ajustou na corda uma seta e apontou. O arco encurvou-se elegantemente. A flecha partiu. Lå no rebanho o veado dianteiro deu um salto e caiu. A flecha atingira-o no coração.
Um murmĂșrio de espanto ergueu-se do grupo de guardas. E tambĂ©m um rugido de cĂłlera.
â Sabes o que acabas de fazer, menino? â gritou o desapontado chefe. â Acabas de matar um cervo real, e portanto cometeste um crime contra as leis de Sua Majestade. NĂŁo me fales nas vinte moedas e raspa-te daqui quanto antes. Tua presença me irrita.
O sangue do rapaz esfervia-lhe nas veias. Encarou o mau homem a fito e rosnou:
â JĂĄ conheço essa cara, senhor chefe. Focinho dum homem que usa sapatos de defunto.
E com isso se afastou, com a alma a estalar de Ăłdio.
0 chefe dos guardas respondeu com uma blasfĂȘmia e, vencido pela cĂłlera, correu ao arco; ajustou uma flecha, que traiçoeiramente remeteu contra o rapaz, pelas costas. Errou por fração de polegada.
Rob nĂŁo se conteve. Voltou-se para o inimigo, gritando:
â Ah! Vejo que nĂŁo atira bem como eu, apesar de tĂŽdas as fanfarronadas. E bem merece uma lição dĂȘste arco de dois vintĂ©ns.
Mal acabou de falar e jĂĄ a flecha partiu. Um grito. O chefe dos guardas tombara de bĂŽrco. Surpresos com o inesperado desenlace, os guardas rodearam o chefe, tentando reanimĂĄ-lo. InĂștil. A seta fĂŽra-lhe ao coração. O pai de Rob estava vingado. Os guardas arremeteram contra o matador.
ImpossĂvel alcançå-lo. AlĂ©m da dianteira que levava, Rob tinha vinte anos e defendia a vida. Ao cair da tarde portou na cabana duma viĂșva para descanso. Sentia-se exausto e faminto. A boa mulher reconheceu nĂȘle o menino que muitas vĂȘzes lhe passara pela porta, com Will e Marian. Preparou-Ihe bolos e mais gulodices, insistindo para que se demorasse ali, e lhe contasse sua histĂłria. Depois meneou a cabeça desconsoladamente.
â Um mau vento sopra sĂŽbre estas terras, gemeu. Os pobres sĂŁo despojados de tudo; os ricos pisam sĂŽbre seus corpos martirizados. Meus trĂȘs filhos foram postos fora da lei por terem abatido um cervo real â meio Ășnico que tinham para escapar Ă morte pela fome. Andam agora ocultos na floresta, com mais quarenta homens igualmente perseguidos.
â Onde param ĂȘles, boa velhinha? indagou Rob. Por Deus que me quero juntar a ĂȘsses amigos.
A velha, desconfiada, evitou fornecer informação segura. Mas quando viu não haver outro remédio, disse:
â Meus filhos virĂŁo visitar-me esta noite. Se ficares aqui poderĂĄs vĂȘ-los.
Rob, apesar de saber-se perseguido, resolveu ficar, com a intuição de que iria conhecer homens da sua tĂȘmpera e de sentimentos afins. E foi o que se deu. Os moços vieram. Travaram conhecimento com o foragido e, reconhecendo-lhe a sinceridade e as qualidades, admitiram-no no bando. Um dĂȘles disse:
â Nosso grupo tem falta dum bom chefe. EstĂĄvamos a estudar o meio de escolhĂȘ-lo. Agora foi resolvido que aquĂȘle dentre nĂłs que fĂŽr Ă feira e conquistar o prĂȘmio, ĂȘsse nos chefiarĂĄ.
Rob pÎs-se de pé.
â Ătimo! Parti de casa para disputar ĂȘsse concurso na feira de Nottingham â e estou certo de que saberei manter os guardas florestais e os homens dos xerifes de tĂŽda cristandade a boa distĂąncia de mim.
Apesar de tĂŁo nĂŽvo ainda, o brilho dos seus olhos e a energia de sua atitude disseram aos moços que seria aquĂȘle o chefe ideal do bando.
â A Nottingham! A Nottingham, pois! exclamaram. Se vences o prĂȘmio da seta de ouro, serĂĄs o chefe indisputado dos âfora-da-leiâ da floresta de Sherwood.
Assentado isso, pĂŽs-se Rob a pensar em como melhor se disfarçaria para aparecer na cidade sem receio de aprisionamento, pois com certeza os guardas jĂĄ tinham pĂŽsto sua cabeça a prĂȘmio. O problema foi resolvido depressa.
Chegado à cidade, Rob varou a multidão, rumo à praça do mercado. Trombetas soavam. O povo se aglomerava em certo ponto para ouvir dum arauto a leitura da proclamação do xerife:
â âUm tal Roberto, sobrinho de Gamewell Hall, havendo matado o chefe dos guardas florestais do rei, fica pĂŽsto de hoje em diante fora da lei. Em conseqĂŒĂȘncia, um prĂȘmio de cem libras serĂĄ pago a quem o prender, vivo ou morto.â
O arauto fĂȘz novamente soar sua trombeta e o povo se espalhou alegremente, com o pensamento nas cem libras do prĂȘmio. A proclamação foi afixada no lugar do costume, onde gente de nariz para o ar entrou a revezar-se na leitura. A morte do chefe dos guardas florestais constituĂa caso de sensação.
Mas povo Ă© povo. O anseio pelas festas fĂȘz que logo todos passassem aquilo para segunda plana, de modo que nas portas da cidade sĂł ficaram os guardas florestais que, com o xerife, se empenhavam em apanhar o criminoso. O velho Ăłdio dĂȘsse xerife contra o pai de Robin voltava-se agora contra o filho.
O grande acontecimento do dia, porĂ©m, nĂŁo foi ĂȘsse â foi o que sobreveio Ă tarde: concurso de tiro para a disputa da flecha de ouro. Compareceram vinte concorrentes, entre ĂȘles um que mais parecia mendigo, todo esfarrapado que estava, ar sorno, arranhĂ”es pelos braços e faces. SĂŽbre a cabeça tinha um velho capuz semelhante aos de certos monges. Foi manquitolando que tomou lugar entre os vinte atiradores, fazendo a assistĂȘncia rir-se de sua triste figura. Como, entretanto, o concurso se abrira para quem quer que fĂŽsse, nĂŁo houve jeito de evitar que um mendigo nĂȘle tomasse parte.
Lado a lado com Rob (pois era Rob o mendigo) vinha um alentado atirador de pele requeimada e um dos olhos oculto por uma faixa verde. A assistĂȘncia tambĂ©m troçou dĂȘsse estropiado concorrente. Sem dar atenção a isso, entrou o âcegoâ a experimentar a flexibilidade do arco e a remexer em seu carcĂĄs de flechas.
A multidão jå era grande. Gente da cidade e das redondezas ali se reunira no antegÎzo da disputa. Anfiteatro espaçoso. No camarote central figurava o xerif...